Entro na sala e vejo a porta do quarto dos meus pais aberta. Um cheiro bastante enjoativo invade todos os cantos. Fico especado a olhar para aquela cara que me faz lembrar azeitonas verdes.
Correu-te bem o dia? E se o lobo aparece? Que mania essa — de nos meterem medo com os lobos, mal nascemos! Depois fico preocupado porque faltam dois anhos. Era a caminhada que me punha assim, descobri mais tarde em conversa com o Nicolau que se queixava do mesmo mal. Aquela caminhada estafava-nos. E quando chovia, ou a neve cobria a serra, ainda era pior. O pai prometera-me um, se passasse de ano, como de facto aconteceu. Cada professor tem a sua mania, um tique especial.
E ponto final. E ri: — Se eu comesse assim, um dia destes dava um estoiro! Pouso os livros em cima da mesa. Come qualquer coisa! Dei—dei—deixa-me ir con-con-conti-go! Acedo, bastante contrariado. Quem te disse que o pai ia morrer? Depois o pai explica. De repente, o Jacinto apareceu com o cavaquinho. Nas noites de Inverno, sobretudo nas semanas do Carnaval, iam tocar a bailes. Entra em casa cansado mas contente. E logo a sala fica a cheirar a perfume, a tabaco e suor.
Ah, que noite! Nunca lho disse, mas eu gostava tanto que o meu pai me ensinasse a tocar cavaquinho. Depois arrependi-me, era uma pergunta tola. E ele: — Breve vou para casa, vais ver! O pai quis saber tudo. Acabaram as aulas. Acabaram os retinidos de despertador e da campainha. Acabaram as caminhadas! Sei que vai demorar muitos anos a ficar vistosa. Mas encontrei-os! Fica a tomar conta de tudo. Depois o pai diz como foi! Telefonaram do hospital antes de o mandarem para a cidade.
E agora aqui estou a pensar. Puseram quatro bancos compridos no meio da sala e abriram as portas. Trouxeram a urna, que cheirava a verniz, e colocaram-na por cima dos bancos. Todas diziam a mesma coisa: — Lamento muito, os meus sentimentos. Muitas cheiravam a estrume e a terra, outras a perfume.
Tinha os ouvidos a zumbir. Empurraram-me devagarinho para fora da sala. Detesto toupeiras! Pensava eu nestas coisas no meio do milharal que me cobria completamente, e assobiava baixinho. Vou-me embora! Contente e admirado, abri-o devagarinho. E fiquei surpreendido ao ver, dentro do envelope, guardanapos de papel escritos de ponta a ponta. Mando-te todos os guardanapos que escrevi, e acho que vais entender como tem sido a minha vida fora do Pragal.
Adeusinho e boas festas! Teu grande amigo, Nicolau. E foi esse o meu jantar. Eu nem queria acreditar! Hoje tem vinte e sete anos. Tinha pressa que o dia clareasse para se encontrar com seu passado. Partiu antes, carregando na bagagem um plano de vida para ela e Sueli. A filha de Sueli respirou fundo e seguiu.
Na secretaria, perguntou pela paciente. A frase soou como um tiro. Onde estavam os finais felizes? Havia perdido, pela segunda vez, a pessoa que julgava ser a mais importante da sua vida. No hospital, a estudante conseguiu recolher fotos dela e alguns poucos pertences. Vim aqui dizer que eu gostaria de estar em casa nesta data. Agiu sem piedade consigo mesma e com os outros.
Quando conseguia, Malaquias roubava alguma comida e levava para ela. Sueli Rezende. Tratada como bicho, ela comportava-se como um. Parece maluco. Ele ria. Ela aprendeu a bordar. Dois anos antes de morrer, Sueli demonstrava intenso sofrimento. Em 22 de agosto de , a paciente teve uma nova crise. Nafinabeirae branca. Tinha perdido o marido havia dois anos. Calado, o rapaz de dezesseis anos cresceu sem amigos. Logo a gente se encontra.
Quando Donana tocava seu rosto, ele se sentia o mais rico dos garotos, pois tinha o melhor carinho do mundo. Luiz Pereira de Melo, hoje com setenta e oito anos, sobrevivente do holocausto, foi internado aos dezesseis anos. Fotos de e de hoje. Ele nunca as recebeu. Todos os dias ela estendia um pano na cama do menino, que poderia chegar a qualquer momento. Donana faleceu aos setenta e cinco anos sem resposta.
Agora havia duas camas vazias. A visita no asilo a surpreendeu. Lilia passou a ponta dos dedos na sobrancelha falha de Luiz. Quando era menino, Luizinho costumava caminhar pelas ruas de pedra que circundam a igreja.
Como resgatar o sofrimento imposto por uma vida inteira? Bem que tentou descobrir o motivo pelo qual foi levado para o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil da capital mineira. Nunca se conformou com o destino que lhe impuseram. Assim, foi somando migalhas. Quando o montante cresceu, passou a emprestar dinheiro a juros e ganhou certo status na unidade.
Nilta passou a lavar as roupas de Adelino no hospital e a cuidar das coisas do paciente. Ela teve vontade de se arrumar e passou a sorrir. Levava roupas, guloseimas. Assim, arquitetou um plano maluco: casar-se com ela. Seu desejo era arranjar um lugar onde os dois pudessem morar. Empolgou-se com a ideia, mas a responsabilidade de manter um lar era desafio que Adelino nunca havia enfrentado. Era a primeira vez que ela via algo diferente no olhar dele. Sentiu um arrepio. Havia muito a ser preparado.
Ela teve o vestido branco confeccionado por uma costureira famosa do ramo. Assim, por quase um ano sentaram-se nos bancos da escola do bairro onde moravam. Era a primeira vez que ela gostava do que via no espelho. Em nenhum momento lembraram-se das dores impingidas a cada um. Cortaram o bolo gigante, tiraram fotos, brindaram ao novo tempo.
Aquele, sim, era o lugar onde eles seriam pela primeira vez um do outro. Os sete anos seguintes foram de uma paz que eles desconheciam. Aprenderam, ainda, a cuidar de si e do outro. Nas pequenas compras de casa, Nilta acompanha o marido. Nunca brigam. Ela acompanha o casal a cada quinze dias. Recebe em troca afetividade, sendo surpreendida pela capacidade que eles demonstram de se reinventar.
Enquanto eles brincavam, ela era explorada no trabalho infantil. A vida em casa era conturbada. Quando sobrava tempo, brincava escondido com a boneca de pano que havia costurado com retalhos que encontrou. Sem falar nada, ele a agarrou. O homem apareceu na escada, batendo a porta. Ela se encolheu. Puxada pelos cabelos, foi jogada sobre a mesa. Machucada, Geralda sentiu dor na alma. Pela primeira vez na vida, desejou a morte. Quando o ato acabou, ela permaneceu deitada na mesa.
O tempo passou, mas agora quem estava diferente era ela. A mama havia crescido; o quadril, alargado. Ela vomitava quase que diariamente e, ainda assim, sentia mais fome.
Depois de uma longa viagem, elas chegaram a Barbacena. Que lugar era aquele? Por que as pessoas estavam ali? Os gemidos de lamento eram ensurdecedores. O sorriso dele renovava a coragem dela. Quando chegou, no entanto, percebeu algo de errado. Vem, querido, estou aqui.
As enfermeiras procuraram demonstrar naturalidade, mas havia um clima tenso no ar. Foi levado para longe — respondeu uma das freiras que acabava de chegar. Geralda perdeu o controle. Aos dezoito anos, a jovem deixou o hospital com passos de uma idosa.
A voz parecia vir de muito longe. Com quarenta e um graus de febre, ele delirava. Passou a noite toda com arrepios pelo corpo e tremedeira que nenhum cobertor foi capaz de fazer parar.
Na cabeceira da cama, a mulher fazia compressas com toalha. A temperatura do corpo havia baixado. Precisava descansar para enfrentar a longa jornada que teria pela frente. Todas as noites, pegava uma cadeira e colocava no meio da sala de TV.
Como todos queriam receber o carinho, a disputa era acirrada. Apesar de racionada, a comida tinha sabor. O melhor era a cuca preparada pelas freiras. Tudo era coletivo, e, por isso, havia um senso de comunidade muito forte entre eles.
Restava a ele obedecer. Saiu pisando duro. Ela, por sua vez, fitava o menino com os olhos negros arregalados. Quem fazia xixi na cama passava a noite toda debaixo do chuveiro frio como castigo. Pegava um fio de duas pontas desencapadas e mandava o primeiro garoto segurar uma delas.
Colocava a outra ponta na tomada. Acertou o rosto do adolescente com uma vara. Esquivou-se de Rodrigues, que procurou outro. Para se proteger de Rodrigues, Paulinho, outro craque de bola do patronato, resolveu guardar o cutelo, instrumento cortante de cozinha, debaixo do travesseiro.
Assim, se fosse atacado, revidaria. Dois tratores de esteira eram usados nas obras. Rodrigues acabou sendo demitido. Ele estaria vivo? Passava fome? Mesmo sem saber ler nem escrever, ela conseguiu que estudassem. Anos mais tarde, ouviu falar que o filho havia sido transferido para a Febem. Desfalcada, precisava de novos membros. Sentiu-se o pior dos homens ao receber do maestro Nadir o instrumento musical em forma de sino. Aquilo era o fim do mundo, ele pensava.
Recebeu o adolescente com o sorriso que ele tanto amava, mas o interno da Febem tinha cara de poucos amigos. Sonhei a minha vida inteira em tocar tuba. Com os olhos arregalados, estava visivelmente desconcertado. Contar que eu vou tocar tuba na banda da Febem. Estou adorando — improvisou o adolescente. Aprendeu o instrumento, sem saber que ele consolidaria sua carreira mais tarde. Nenhum deles tinha dinheiro para se manter na cidade.
Nos fins de semana, quando todos iam para casa, o instrumentista ficava na companhia de seus livros. Acabou matriculando-se em filosofia, na PUC, em Ele completaria quarenta e cinco anos.
Geralda estremeceu. Seria mesmo verdade? Geralda estava paralisada. Em poucos segundos, conseguiu obter respostas que a atormentaram por toda uma vida. Depois de algumas horas de conversa, Luiz despediu-se, marcando um novo encontro, a fim de combinar os detalhes da viagem.
Quer me levar para Belo Horizonte. Mas o que significava tudo aquilo, pensou. Geralda entrou na sala sob os aplausos dos colegas de farda do filho. Naquele exato momento, o gigante se quedou. Ouviram o barulho dos cadeados sendo abertos.
Quase todas as imagens feitas naquela tarde foram registradas em preto e branco, em rolos de filme 35 mm. Nos alojamentos, trapos humanos deitados em camas de trapos. Moscas pousavam em cima dos mortos-vivos. Viu muitos doentes esquecidos nos leitos, deixados ali para morrer.
Jamais havia flagrado nada parecido. Conquistar um lugar na revista era o desejo de muita gente, inclusive de seu mais recente contratado. Bird Box: The bestselling psychological thriller, now a major film. First Blood. Rosemary's Baby. Uderzo 34 R.
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